Autismo - Uma Vida em Poucas Palavras

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terça-feira, 2 de abril de 2019

A alcatéia que nos cerca


Assim como a brava mãe Lau Patrón, nós, mães de autistas, também enfrentamos milhares de leões ao longo de nossa vida.
Este ano já começou desafiando meus nervos e capacidade de tolerância. As escolas especiais municipais de Porto Alegre tiveram o início do ano letivo na segunda quinzena de março, o que ao meu ver é um início muito tardio, que resulta no baixo aproveitamento de tempo para a estimulação que o autista necessita. As famílias que não podem pagar atendimentos extra curriculares tem que criar alternativas de entretenimento para seus filhos, o que gera uma reestruturação da dinâmica familiar que muitas mães não possuem. Os autistas, em geral, são muito ativos e têm a necessidade de rotinas bem estruturadas e atrativas.
Não bastasse esse hiato tão extenso, ocorre após uma semana de aula a primeira paralisação por falta de funcionários da limpeza,  que não tendo seus salários pagos adequadamente desde dezembro, interromperam suas atividades deixando escolas em situação de risco sanitário, com salas e banheiros sujos.
Bem, resolvido temporariamente este problema,  visto que as folhas salariais foram parcialmente quitadas, não conseguimos usufruir nem uma semana de tranquilidade,  pois mal os alunos retornaram às aulas e o aviso de início de greve nos chega via mensagem de celular.
Sinceramente,  sinto que a educação formal de meu filho está jogada à sorte da maré, e eu, agarrada à ele, nado sempre na direção contrária. Pois tudo é difícil e nos vejo sempre deslocados. Da escola privada ele foi rechaçado,  na escola pública não encontro eco nas minhas reivindicações, como se todos os problemas que são apontados fossem afrontas à equipe docente e direção,  quando na verdade, a revolta é contra o sistema precário e decadente.
Nossos filhos merecem um ambiente escolar digno, com estrutura física e professores bem remunerados e valorizados. A escola especial do município já foi exemplo de excelência e hoje mostra-se como exemplo de uma inadequada gestão financeira e de descaso com os que mais precisam.
Porto Alegre não merece este conceito, e nossos autistas merecem respeito e educação de qualidade.
Vou adiante, enfrentando as novas batalhas que surgirão. O leão da greve, por ora, foi derrotado.

                                                                               
                Silvia Sperling Canabarro

sábado, 2 de fevereiro de 2019

Sei lá, a vida tem sempre razão



Recentemente uma grande amiga do passado entrou em contato comigo. Tantos anos nos separam. Tantos fatos, surpresas, caminhos, barreiras. Penso que me isolei por opção. Construí meu mundo. Eu , meu marido e meu filho autista. Cobri nosso muro imaginário de flores e cores. Assim me sinto mais segura.
Me pergunto, se voltasse no tempo faria algo diferente? Digo que não teria feito Nutrição,  pois sou completamente avessa à culinária, e fora a paixão pela atividade física e a preocupação com a saúde, a única coisa que me atrai nesta área é o desejo de comer bem. Mas se não tivesse ingressado neste curso não teria conhecido esta amiga e, consequentemente, meu marido,  pois foi através dela que o conheci. Então já penso que não valeria a pena alterar este capítulo de minha vida, pois nesta trajetória encontrei meu grande amor e companheiro.
Outra escolha que optaria por corrigir, e exponho sem culpa, é a de ter tido filho. Sou uma monstra? Uma desalmada? Acredito que não. Sou uma mulher realista e que manifesto meu pensamento de maneira cáustica e direta. Acho que nem eu, nem meu filho, merecíamos passar por tantas dores, rechaços e frustrações. Se não possuía escolha de tê-lo saudável,  gozando de uma vida repleta de oportunidades,  disfrutando do prazer da autonomia e do livre arbítrio, não deveria ter me arriscado nesta aventura cheia de imprevistos e labirintos que é a maternidade.
 Bem, mas o tive, e junto com as mazelas de sua doença,  pude reaprender a vivenciar a felicidade. São muitos os momentos de tristeza e desespero. Como na inconstância do seu sono, na ausência de comunicação verbal acompanhada de irritabilidade, lamentos e gritos inapropriados em ambientes públicos, e na hiperatividade que o impede de desenvolver adequadamente seu potencial cognitivo,  sustentar atenção em atividades de aprendizagem e concluir tarefas.
 Mas também não posso desconsiderar que são inúmeros os momentos de deleite em nosso cotidiano. Como a fuga para a praia ao longo de todo o ano, as longas caminhadas no condomínio pacífico e arborizado, projetado sob medida para as necessidades de meu filho,  o desfrute de refeições em locais especiais, o encantamento frequente com a natureza que nos cerca, e a contemplação do prazer aquático que meu menino experimenta em seus mergulhos infindáveis, naquele que seria o seu ambiente de escolha para passar o resto de seus dias,  a piscina.
Sei que se não tivesse um filho autista, teria entrado, sem pestanejar,  na roda viva que a maioria das pessoas se encontram. Faria tudo igual. Viajaria nos feriados por estradas congestionadas, em aeroportos lotados. Enfrentaria filas homéricas em supermercados e lojas em períodos festivos. Gastaria mundos e fundos em festinhas de aniversário.  Enlouqueceria no Natal com os preparativos e compra de presentes, e me afligiria com a definição de onde passar o Reveillon, de preferência em lugares abarrotados e cheios de histeria e frenesi coletivo.
A necessidade de encontrar lugares mais tolerantes e criar situações mais controláveis no sentido de manejo, me fez mergulhar em um mundo muito interessante. Minhas reflexões ficaram muito mais intensas. Meus breves instantes de leitura, mais profundos. Meus momentos de lazer mais enriquecedores. Descobri que os lugares em que meu filho é bem aceito são  ambientes com pessoas de alma boa, que me acrescentam e me transferem energia positiva. Enriquecem a vida.
Desta forma, meu filho me afasta dos pobres de espírito,  esnobes e de caráter duvidoso. Nossa rotina se tornou pacata e, não por isso, monótona. Na verdade é bem intensa e diversificada. Viajamos bastante,  para lugares que elegemos como nossos refúgios, e em períodos mais tranquilos, que nos proporcionam experiências únicas e intransferíveis, que não necessitam mil registros e compartilhamentos digitais contínuos.
Aprendi com a dor a introjetar cada instante. Absorver a essência. Expurgar o desnecessário e nutrir minha alma.
Se na vida nem sempre temos escolha para tudo, que pelo menos eu possa escolher amar, sorrir e seguir.
                                                                           
                                                                        Silvia Sperling Canabarro