Há muito tempo que não escrevo. Há
centenas de dias interrompi meu processo de catarse literária. Obviamente não
foi por falta de conteúdo, visto à
catástrofe que assolou a humanidade no último ano e que nos desolou e nos
arrastou até onde nos encontramos agora. Fomos postos cara a cara com a
tristeza, a solidão, o pânico,
a finitude e a impotência frente à nossa insignificância, no sentido mais amplo da palavra. Podemos ser
gigantes em sentimentos e atos, mas um vírus,
um organismo invisível, é capaz
de destruir sonhos, de mudar
radicalmente nosso plano de vida.
E assim, esmagada pelo peso desse
vírus que se espalha sorrateiramente, me vi na linha de frente. Não de um
hospital ou de uma unidade médica de urgência,
mas na linha de frente no cuidado do meu filho autista, que sem entender
direito o que aconteceu no mundo, teve
sua rotina agitada bruscamente modificada. Sem atividades com psicopedagogos,
terapeutas ocupacionais, fono e escola. Com uma mãe que só sabe ser mãe. Não
sabe planejar atividades pedagógicas ou criar jogos educativos. Uma mãe que
adorava passear com o filho no shopping,
ir à restaurantes, viajar de
avião, proporcionar atividades sociais
que o lapidasse para o convívio em sociedade, e ampliasse seu repertório de
mundo, já que sua mudez e incapacidade
de externar os sentimentos e aprendizagens de forma clara, o deixam em
constante desvantagem cognitiva.
Pois então, me paramentei com as máscaras descartáveis
hospitalares mais eficientes e com dezenas de latas de álcool spray para nossa
missão cotidiana de permanecer vivos e enxergar a beleza que nos cerca e que
somos privilegiados em poder usufruir. Mas o que me paralisou e me deixou
cética quanto à possibilidade de viver em harmonia social, são as atitudes
bizarras e comportamentos cruéis de pessoas em meio à pandemia. É bizarro as
pessoas se aglomerarem sistematicamente e extremamente cruel sair para a rua
sem máscara.
Os únicos prazeres fora de casa que
posso proporcionar ao meu filho, nesse momento, são uma refeição ao ar livre ou caminhar no
nosso condomínio verde e na beira da praia. Mas até esses pequenos prazeres nos são ceifados,
pois é raro encontrar uma mesa externa de um restaurante com o correto
distanciamento. Nos resta um único oásis na praia. Uma área externa de um
shopping à beira mar , com um sofá agradável em que posso despejar todo o
conteúdo de um frasco de álcool para higienizá-lo, sem ser olhada como uma
lunática. E assim, em um horário
programado, distante dos demais, como manda o protocolo, meu menino adolescente, pode relembrar um pouco o que é a vida
normal.
Nossas caminhadas , também essenciais
à saúde física e mental
( nossa reminiscência de liberdade),
também torna-se uma aventura arriscada e me leva à cólera à cada saída. Meu
filho não usa a máscara por sua incapacidade mental de entender a importância,
mas a maioria das pessoas que cruzam nosso caminho e não a usam, o fazem por incapacidade moral. É um
desajuste comportamental muito pior que a deficiência dele, pois coloca em
risco a vida dos outros intencionalmente. É um misto de ignorância, bestialidade e maldade.
Dessa forma, novamente,
a desajustada passa a ser eu, que tenho que caminhar em zigue-zague para
desviar dos transeuntes sem proteção facial,
e assim , proteger meu filho.
Nosso passeio, muitas vezes, é
tenso, meio exaustivo, mas no final das contas,
fico contente em poder sair da nossa redoma acolhedora chamada de lar,
mas que, à essa altura, assemelha-se a
uma prisão domiciliar.
E então finalizo essa reflexão expondo
que nunca me senti tão angustiada e ao mesmo tempo afortunada. Tão decepcionada
e esperançosa. Tão ociosa e produtiva. Tão distante do coletivo e feliz. Atenta
ao cuidado, rezando e cantando:
Ainda leva uma cara
Pra gente poder dar risada
Assim caminha a humanidade
Com passos de formiga e sem
vontade...
Silvia Sperling Canabarro