Autismo - Uma Vida em Poucas Palavras

Autismo - Uma Vida em Poucas Palavras

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Aqui você encontrará histórias, emoções e sentimentos de uma mãe.
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sábado, 2 de março de 2013

E a vida segue

Eu vou, mas sempre volto. Me afasto, mas retorno às palavras. Porque o pensamento transborda o dia inteiro, porém, faltam forças para expressar o que me acompanha e me atordoa. Meu menino cresceu, neste ano completará uma década de existência, e de certa forma eu também completarei dez anos de uma nova vida. O autismo de Otávio era considerado por mim e pelos que o acompanhavam, como sendo de grau leve, e ele, uma criança de afeto preservado. Hoje, considero seu autismo como de grau moderado, e seu afeto continua presente, mas suas dificuldades cognitivas e suas comorbidades neurológicas obscuras o tornam cada vez mais instável. A labilidade emocional nos mostra, de certa forma, que sua compreensão é maior do que a inferida, mas nos torna vulneráveis a seus ataques de raiva e agressão a si e a outros. Tentamos controlar os rompantes com medicamentos e nos perdemos neste emaranhado de condições, sem saber o que são descargas epileptogênicas e o que são descargas de sentimentos: a raiva da incompreensão, o isolamento provocado pela falta de expressão verbal, a ansiedade de viver neste mundo caótico, cheio de regras, cores, sabores, sons, letras e números. A cada início de ano letivo me pergunto se vale a pena insistir na escola regular, em tanto esforço para enquadrá-lo em um ambiente que muito pouco tem a lhe oferecer do ponto de vista do aprendizado formal. Mas quando entramos na escola e ele sorri e se abraça à pais, professoras e diretoras, não há como não buscar forças para mais uma jornada de tentativas, discussões e adaptações. Penso: temos que tentar sempre, até o dia em que sua presença em sala de aula se torne inviável, e os problemas se tornem maiores do que as soluções. Este dia pode chegar logo, imprevisivelmente, ou pode não chegar, e ele nos surpreender com sua vontade de pertencer a nosso mundo, maior do que tudo, maior do que sua doença. Eu espero atender às suas expectativas, ser uma mãe zelosa, inserir-lhe no nosso cotidiano sem ferí-lo demais, nem amá-lo de menos. Doar meu tempo, minha paciência e minha energia. Para tanto, não esqueço de mim, cuido diariamente de minha saúde física e mental. Delego tarefas, mas sem abrir mão da culpa de estar sendo feliz sem ele. Tenho que experimentar estas sensações, que mesmo não reveladas pelas mães de crianças independentes, são saboreadas de uma maneira natural e abastecem o interior, como substratos para a alegria de viver. Quem diz que conviver com esta doença é uma dádiva e que a vinda de um filho autista aprimora uma mãe, só pode estar encobrindo sua real dor e frustração, pois ninguém deseja dar à luz a tanto sofrimento e tão pouco poder fazer. De minha parte, busco incessantemente uma forma mais leve e positiva de enxergar nosso destino, de rever caminhos e me refugiar na paz. Somente com minha franqueza escancarada e minha alma exposta é que posso seguir acreditando que tudo vale a pena. Silvia Sperling

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

É Preciso Saber Viver

No próximo mês meu filho completará 9 anos. O sonho de muitas mães verbalizado como: “Meu filho será sempre meu bebê!”, para mim é um pesadelo. Tudo o que mais desejo é que ele desabroche e deixe de ser meu bebê. A cada ano que passa muitos são os desafios; muitos problemas aparecem e algumas poucas conquistas surgem. Devo incentivá-lo a ampliar sua autonomia e confiar em suas potencialidades. Devo lhe dar amor e segurança, lhe proporcionar uma vida digna e feliz. Ofertar uma gama de sentimentos e atitudes, tendo em troca dias estafantes, beliscões, puxões de cabelo, gritos e alguns breves afagos e sorrisos. Sou cáustica como o autismo, mas tento manter a doçura amparada no calor do sol ao amanhecer e nos momentos de alegria compartilhados com meus dois amores – Otávio e meu marido. Degustar minhas cervejas prediletas enquanto vejo a satisfação de Otávio ao devorar um brigadeiro na colher em nosso boteco acolhedor. Ter um momento de tranquilidade na hora do almoço enquanto ele brinca no gramado da churrascaria em que é frequentador assíduo. Momentos prosaicos, mas que me sustentam. Sinceramente, a cada término de dia penso que não terei alegria e entusiasmo para prosseguir. Mas basta uma boa noite de sono e um novo raiar do sol, como uma página em branco, para eu retomar meus afazeres e seguir escrevendo a nossa história. Me adapto a realidade de possuir um bebê de 9 anos, que engatinha no quesito amadurecimento cognitivo, mas que avança a seu modo na compreensão do mundo que o cerca, e que se revolta com estas contradições de desenvolvimento. Posso enxergar em seus olhos a angústia e a raiva por ser assim, tão diferente e tão cofuso, mas não posso deixar de sentir a mesma angústia e raiva por ser o alvo de suas demonstrações de sofrimento. Sentir as pancadas físicas reverberadas na alma. É preciso muita garra, auto-controle e acima de tudo amor, para dar a cara a tapa, literalmente, e seguir lutando, sorrindo e amando. É preciso empenho para acreditar que a escola regular realmente o quer e aposta na sua inclusão, contemplando suas dificuldades e habilidades, e vislumbra sua permanência nos próximos anos. É preciso bom humor para enfrentar os maus momentos e auxílio para solucionar impasses. É preciso encontrar formas alternativas de ensinar, brincar, compartilhar e ser feliz. É preciso ignorar a ignorância, a arrogância e a mediocridade. É preciso saber viver com o autista e conviver com o autismo. Silvia Sperling

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Prismas

É tão clichê falar que após situações difíceis, como perdas ou doenças, nosso modo de ver as coisas se modifica. Parece que ampliamos momentos singelos, tornando-os impactantes. E essa é realmente uma verdade. Acho que me sinto tão só neste mundo, justamente por não enxergar mais as coisas como antigamente. Minhas preocupações são triviais e repetitivas, e tão distintas da maioria das mães. Não tenho que me preocupar se meu filho terá uma boa avaliação escolar no semestre, se está atingindo os objetivos curriculares propostos, mas me preocupo se ele conseguirá acompanhar a evolução da turma e permanecerá na escola regular. Não penso no que ele escolherá para seu futuro profissional, e se passará no vestibular de uma universidade pública ou privada, mas penso se ele poderá exercer uma ocupação no mercado de trabalho e se terá uma independência relativa. Este mesmo modo peculiar de expectativa perante a vida guia meu olhar no que diz respeito à felicidade. Para não esmorecer ou enlouquecer, saboreio uma manhã linda de sol, sentada na grama do parque olhando o rosto alegre e sereno de meu filho curtindo este momento. E um dia em que ele não se desorganize severamente, sem golpear a cabeça com suas mãos, de forma violenta e raivosa, hoje, já é considerado um ótimo dia para mim. Uma tarde mergulhada na piscina, vendo-o satisfeito por deslocar-se com tanta perícia neste ambiente não usual ao ser humano, mas que traz tanta tranquilidade à maioria de nós, e que em especial, aos autistas atrai tanto por proporcionar sensações únicas; este é um exemplo de uma tarde especial e emocionante. Vê-lo adormecer aos pés da nossa cama, sem choro ou lamúria, enquanto olhamos televisão no final de uma jornada, é a “chave de ouro” de um dia perfeito. Quanta simplicidade! Quanta felicidade! E eu que era tão certa de tudo, tão severa, tão Eu. Hoje sou Nós, mas continuo intensa e repleta de desejos. Desejo sorrisos, beijos, abraços, sol, calor, amor e paz. Acho que foi esta experiência tão intensa da maternidade que me proporcionou tantas sensações e motivações, que me modificam a cada momento. Sinto a dor mais intensa, a alegria mais contagiante, a fadiga esmagadora e a força extrema. Cultivo um jardim que é meu Éden. Aprecio as cores, os cheiros e os sabores. Amo a forma e a estética e tento compreender o conteúdo e o etéreo. Hoje sou frágil e desbravadora, fútil e profunda. Hoje sou mais complexa e complicada. Mas, sigo tentando saborear a felicidade que se apresenta de formas tão distintas. Tão próxima e tão distante. Silvia Sperling

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Linha Tênue

Sempre que leio novidades acerca de medicamentos para o tratamento do autismo fico na torcida de que em breve algum deles passe por todas as fases necessárias de testes e chegue, finalmente, às prateleiras das farmácias, e nos auxilie a melhorar a vida dos portadores do transtorno. O uso da medicação é muitas vezes necessário, mas delicado o processo de acerto na escolha da droga e dosagem. Um medicamento pode auxiliar no controle do comportamento agressivo, mas desregular o apetite. Outro, administrado por longo tempo pode causar efeitos colaterais leves passageiros ou mais sérios e irreverssíveis. Há ainda, medicações que para um indivíduo tem um efeito desejável e para outro, com a mesma síndrome e idade, causam um efeito contrário e indesejável. Por conta desta variabilidade é que costumo dizer que cabe aos pais a supervisão constante do comportamento de seus filhos durante o uso de medicamentos e a comunicação imediata ao médico sobre alterações físicas ou comportamentais, para o ajuste da droga ou retirada da mesma. Infelizmente, no cuidado do autista não verbal, ficamos reféns da medicação em muitas situações. Atualmente, não sei se a labilidade emocional de Otávio é por conta do uso de uma medicação, pela suspensão de outra, ou, pela manifestação da própria doença. Confesso que esta instabilidade de humor e indefinição de correlação com remédios ou ambiente, me causa um grande desgaste de energia. Para mim, o humor de Otávio atravessa sempre uma corda bamba, que ora pende para a tranquilidade e ora para a irritação, e esta mudança ocorre abruptamente. Sei que os programas fora de casa, como refeições e passeios, seriam bem mais agradáveis se não fossem atormentados pelo receio de uma mudança de temperamento. Escolhemos sempre horários de menos movimento nos restaurantes e com atendimento rápido, para que possamos ao menos comer com relativo sossego. Em casa temos que estar preparados para domingos alegres ou enlouquecedores. Particularmente, acho o autismo a doença mais desagregadora familiar por estas características que testam a paciência e o controle emocional dos cuidadores. Não vislumbro nenhuma patologia que sobrecarregue de tantas formas os pais e que tenha tantas facetas assustadoras e imprevisíveis. Exatamente como o título de um belo filme, é uma viagem inesperada. Silvia Sperling.